KOMPANHIA
O Santo e a Porca
1991 e 2002Um dos mais importantes escritores brasileiros, Ariano Suassuna (1927-2014) andava meio esquecido quando o diretor Ricardo Karman decidiu levar aos palcos a peça que, assim como outras do repertório do romancista e poeta paraibano, costumava ser encenada apenas por grupos amadores. A primeira encenação de O Santo e a Porca (1958), assinada por Ziembinski, havia se tornado histórica. Reuniu no elenco nomes fundamentais do teatro nacional, como Cacilda Becker, Cleide Yáconis e Walmor Chagas, entre outros.
Por isso, a retomada do texto em 1991, no então recém- reformado TBC - Teatro Brasileiro de Comédia, fez justiça a uma das criações seminais da dramaturgia brasileira. Não por acaso, permaneceu dois anos em cartaz, incluindo circulação por várias escolas públicas de São Paulo, dentro do programa Escola Aberta, da FDE - Fundação para o Desenvolvimento da Educação.
Aficionado pela comédia, ele voltou a montá-la, por ocasião da inauguração do teatro do Centro da Terra. Diferentemente de uma década antes, a literatura de Suassuna recuperara o prestígio em função de uma bem-sucedida adaptação em formato de minissérie de O Auto da Compadecida, produzida pela Rede Globo em 1999. A releitura prosseguiu temporada no Centro Cultural São Paulo e, desta vez, conquistou o Prêmio APCA de melhor espetáculo infanto-juvenil daquele ano. A propósito, foi a única vez em sua carreira que Karman recorreu a uma obra já existente e consagrada.
Com influência da poesia de cordel e dos folguedos populares nordestinos, e raízes nos clássicos O Avarento (1668), de Molière, e Aululária (195 a.C.), de Plauto, a história compõe um tratado irresistível sobre a avareza. A sovinice do personagem central desdobra um sem número de situações cômicas típicas da Commedia dell'arte. Sem esconder o viés moralizante, o autor tece também uma crítica sutil à vida difícil no Nordeste, ao apresentar tipos e figuras que espelham diferentes classes sociais.
No intuito de injetar fluência à narrativa, o encenador editou alguns diálogos e condensou em apenas um ato o que originalmente se estendia por três. Além da síntese, transpôs para a mis-en-scène elementos do movimento Armorial, idealizado por Suassuna nos anos 1970, que consistia na formação de uma arte brasileira singular baseada na cultura popular. Um dos artistas mais expressivos dessa corrente artística, o músico Antônio Nóbrega chegou a ser consultado e assistiu ao espetáculo.
A montagem trazia na linguagem, cenografia e vestuário referências contemporâneas, como o grafite dos muros da cidade e o desenho animado. Para facilitar o entra-e-sai dos personagens, o cenário era uma casa cheia de portas, portinhas e entradas secretas estilizadas, de autoria do artista multimídia Otávio Donasci, responsável também pela concepção do figurino farsesco usado pelo elenco. Iconoclasta e com forte acento urbano, o trabalho de grafitagem levou a assinatura do artista Carlos Delfino, integrante do Grupo Tupinãodá, primeiro coletivo de grafite de São Paulo.
O diretor utilizou ainda a estética dos desenhos animados, por entender que a farsa teatral dialogava com esta linguagem. Por conta disso, povoou a representação de gags dos quadrinhos, como ruídos sonoros e ações inerentes do gênero. Se no original, Santo Antônio não passava de uma imagem ou escultura, nesta livre adaptação ele ganhou vida e foi interpretado por um ator de baixa estatura, sem falas, mas que arrancava gargalhadas do público em suas aparições. O Santo e a Porca acabou sendo um hiato na trajetória da Kompanhia do Centro da Terra, que se consolidaria como um grupo na contramão das convenções teatrais.